domingo, 24 de maio de 2009

08/04/09 Uruguaiana – San Francisco, 605 Km (cinco abastecimentos).


Após tomar o café eu senti um misto de tensão com euforia, dali a pouco atravessaria a fronteira com a Argentina e iniciaria um longo trecho de minha viagem na Argentina e no Chile.

Curiosamente, o que eu mais temia neste trecho não era a criminalidade ou os perigos da estrada.

A criminalidade, pensei, não poderia ser pior do que no Brasil, ao contrário, deveria ser similar aos vergonhosos índices brasileiros. Quanto às estradas, bem, estava aqui para cruzá-las!

O que eu temia eram as histórias, fartamente relatadas pelos long riders brasileiros, sobre a corrupção da polícia argentina e suas exigências absurdas como "extintor de incêndio e dois triangulos para moto", excessos "imaginários" de velocidade etc. Ao longo da viagem também ouvi essas histórias em Erechim e com os caminhoneiros gaúchos. Eu estava absolutamente dentro de todas as exigências legais da legislação argentina, tanto no que dizia respeito à motocicleta (carta verde etc), como de minha documentação pessoal (Permissão Internacional de Motorista etc) e bagagem.

Temia mais a minha reação furiosa do que propriamente algum artifício patético de um policial tentando arrumar uma propina. Eu abomino a corrupção e tal sentimento está longe de cinicamente criticar políticos corruptos ou o comportamento alheio.

Eu não sonego impostos; JAMAIS molho a mão de um guarda para ser eximido de uma falta no trânsito, nunca compro DVDs e outras coisas piratas, não uso drogas ilícitas e não compro peças de moto de procedência duvidosa.
Após passar pela imigração argentina e obter a documentação de entrada, fui à Polícia Federal saber qual o procedimento a ser adotado caso fosse multado e obter alguma informação sobre a policia argentina.

Em uma conversa bem-humorada com o policial, ele me disse que o risco era real e a turminha do outro lado da fronteira gostava de uma propina, mas nada que alguns pesos não resolvessem... Perguntei-lhe sobre o procedimento oficial de pagamento de multas e ele me confirmou que o certo era pagar na aduana as multas no momento em que eu retornasse ao Brasil.

Pensei comigo. Ora, esta viagem é uma aventura turística e não uma cruzada moral! Além disso, por motivos de segurança em locais inóspitos se eu fosse "obrigado" a dar alguns trocados a alguém a fim de evitar algum tipo de arbitrariedade ou mesmo violência, eu daria e seguiria viagem. Se ocorresse alguma extorsão mais séria, eu teria então que tomar providências.

Evitaria cair na armadilha do “se”, que permite milhões de possibilidades que estão totalmente fora do controle de qualquer pessoa. Além disso, a ansiedade são os juros que se paga para um problema que ainda não aconteceu.

Decidi relaxar, mas sem muito sucesso, eu admito...

Logo no inicio na viagem tentei inutilmente passar meu cartão de débito em um posto de gasolina: eu me esqueci que tais cartões não servem para pagamentos e sim somente para saques.

Quase esqueci o cartão no posto e aproveitando a presença de uns caminhoneiros brasileiros curiosos com minha viagem, perguntei-lhes sobre as condições das estradas até Villa Maria.

Eles me disseram que eu chegaria no fim da tarde lá, porém, eu ainda não tinha percebido que traçara um trajeto errado neste trecho inicial da etapa na Argentina.

O Guia Quatro Rodas simplesmente omitia a Ruta Nacional 127 e, em conseqüência, pensei que teria de seguir até Concórdia para então seguir em direção à Santa Fé.

Estava errado. A distância era menor em alguns trechos e maior em outros e isso teve conseqüências na estrada...

Iniciei então o longo percurso de intermináveis retas na Argentina em direção a cidade de Federal.

Com cerca de setenta quilômetros rodados passei por uma barreira policial, o policial sorriu e mandou-me passar, e perguntei se a direção para Santa Fé estava correta.

Minha preocupação com corrupção mais tarde mostrou-se algo mais próximo a uma neurose do que uma precaução normal e sadia.

Passei por diversos postos policiais sem ser parado. A Ruta 127 atravessa uma região inóspita da Argentina, plana, vazia e com uma paisagem que é um misto de cerrado com pampas. O calor era intenso e a estrada de concreto era de mão simples em bom estado, mas com acostamento de cascalho.

Abasteci mais do que o necessário por conta de algumas recomendações exageradas recebidas em Erechim, e tal fato apenas atrasou minha viagem, pois as distâncias dos postos eram compatíveis com a autonomia da CB 500.

Em um inóspito e poeirento posto em Sauce Luna, abasteci e procurei obter mais informações com o funcionário.

Aquele argentino estava admirado com a minha viagem, embora não fosse novidade para ele ver motociclistas brasileiros naquela estrada, apenas ficando abismado com o fato de eu estar viajando sozinho.

O argentino acabou me mostrando que meu mapa da Argentina era inútil. Comprei um excelente mapa no posto e fiquei irritado com a possibilidade de ter planejado mal esta importante etapa da minha viagem.

A Ruta 127 ficava cada vez mais movimentada à medida que me aproximava da cidade de Paraná, capital da Província de Entre Rios.

Paraná é uma grande cidade às margens do Rio Paraná e está praticamente ao lado da igualmente grande cidade de Santa Fé (capital da homônima província de Santa Fé). O acesso entre tais cidades faz-se através de um grande e engenhoso túnel sob o Rio Paraná, corretamente denominado pelos argentinos de túnel sub-fluvial.

Após cruzar o túnel, tendo antes passado por uma barreira policial que novamente não me parou, tive um pouco de dificuldade em acessar a estrada para San Francisco por conta da péssima sinalização da cidade de Santa Fé.

Perdi mais de uma hora atravessando essas duas grandes cidades antes de prosseguir em minha rota para San Francisco.

Já no final da tarde parei em um posto para comer alguma coisa e abastecer pela quinta vez! Embora tivesse percorrido apenas 500 Km.

A estrada para San Francisco estava sendo duplicada e o sol estava se pondo, além disso a estrada estava muito cheia por conta do feriado da semana santa.

Fui um trecho perigoso. A visibilidade era ruim por causa do sol se pondo e a estrada estava repleta de motoristas imprudentes fazendo ultrapassagens perigosas. Esse percurso exigiu muita atenção e habilidade, pois a estrada praticamente não possuía acostamento e o asfalto estava cheio de falhas.

No início da noite cheguei a San Francisco, que erroneamente julguei ser uma cidade pequena.

Procurei um posto para descansar, tomar um café e aproveitar para ligar para minha mulher.

Encontrei um posto que aceitava cartões de crédito e fui para a loja de conveniência, o posto estava cheio com muitas pessoas bebendo.

Estava irritado com o baixo rendimento que tive naquele dia, já era noite e eu ainda estava distante de Villa Maria: o destino final daquele dia.

Embora cansado, decidi manter o cronograma e atingir Villa Maria dirigindo à noite, apesar de estar preocupado com o fato de a estrada estar repleta de motoristas imprudentes: que infestam as estradas durante os grandes feriados.

Após falar com minha mulher, perguntei no posto onde era o desvio para Villa Maria e segui viagem.

Ainda dentro da cidade de San Francisco parei em um sinal de onde visualizei a placa indicando o desvio para Villa Maria e, ainda, uma indicação de um posto policial logo adiante, fato que ainda me causava alguma tensão.

Logo que o sinal abriu, eu fui ladeado por uma picape preta com uma música brega tocando bem alto.

Uma calçada que era uma espécie de agulha (como se chama no Rio de Janeiro) que separava as duas mãos da pista se estreitava abruptamente quase sem sinalização. Ainda olhando para a placa de Villa Maria, recebi uma fechada da picape exatamente no trecho em que ela se estreitava, um pequeno impacto da picape na moto bastou para me jogar contra o meio- fio resultando em uma queda.

A moto caiu sobre a minha perna esquerda e imediatamente eu me levantei, cortei o motor e testei todas as minhas articulações movimentando-me freneticamente em busca de fraturas.

Um casal em uma pequena motocicleta ajudou-me a levantar a moto e foi pedir ajuda... no posto policial logo em frente!

Não deixa de ser cômico que em meio ao meu delírio persecutório policial, eu tenha sido socorrido (e não extorquido) pelos policiais argentinos.

A polícia chegou com giroscópio ligado e logo me identifiquei como brasileiro, eles queriam um relato e expliquei-lhes o acontecido. Um policial bastante jovem explicou-me que como havia uma vítima seria necessário registrar a ocorrência.

Após explicar que os ferimentos eram leves e não havia sequer necessidade de hospital, pedi que me indicassem um mecânico na cidade, pois havia perdido a seta esquerda com a queda e ainda solicitei que me levassem a um hotel.

Os policiais foram educados e sequer pediram meus documentos, aceitaram o fato de que eu não queria formalizar coisa alguma e ainda me escoltaram até um hotel conforme eu solicitara, levando na viatura o alforje esquerdo que fora destroçado com o impacto.

Por ironia do destino quis dar um “regalo” aos três policiais que me auxiliaram, porém eles se negaram a receber...

No hotel mais uma cena hilária aconteceu; pois logo ao entrar no pequeno lobby do estabelecimento me dirigi a um senhor que parecendo ser o proprietário, ficou visivelmente assustado com a minha presença. Eu não o culpo, afinal, eu era um gringo que tinha chegado em uma moto preta escoltado pela polícia, com a calça rasgada e sangrando, vestido com uma jaqueta de couro fechada naquele calor e ainda cravejada com restos mortais de dezenas de insetos e, assim, suando muito, com barba por fazer e descabelado balbuciei o meu sofrível portunhol com aquele pobre senhor! Realmente eu não estava nos meus melhores dias.

O caso é que o sujeito era também antipático e a comunicação foi difícil, acertei o pagamento em dinheiro e fui logo para o quarto cuidar dos meus ferimentos e tomar um banho. Antes, deixei a moto no estacionamento do hotel que ficava a uma quadra de distância e, na volta, a pé e carregando parte da bagagem, ainda pedi, após pacientes esforços, que o dono do hotel me cedesse algo para fazer um curativo, pois eu me esquecera de levar um estojo de primeiros socorros.

Com apenas esparadrapo, um pouco de gaze, álcool iodado e água oxigenada que o sujeito me cedera, fiz um doloroso curativo no joelho e cotovelo esquerdos. A pancada, embora em baixa velocidade, tinha provocado uma grande ferida no joelho que estava repleta de asfalto, causando uma dor intensa quando tive que esfregar a água oxigenada para limpar aqueles depósitos pretos de “restos de estrada”...

Ademais disto, a moto (que em ordem de marcha pesa mais de duzentos quilos) caíra sobre a parte de trás do meu joelho, e um grande hematoma ali estava se formando; coincidentemente, havia levado além de analgésicos, alguns comprimidos de anti-inflamatório, e tomei uma dose logo em seguida para tentar evitar que um inchaço no joelho pudesse impedir a próxima etapa no dia seguinte.

Solicitei água mineral ao dono do hotel pelo interfone e ele veio com uma conversa chata que não estava incluído na diária etc., e eu, já sem paciência com o sujeito disse-lhe rispidamente - apenas traga uma “botella” de água mineral “sin gás”, senhor! Ele me trouxe a bendita garrafa logo em seguida: e em silêncio como convinha.

Tomei banho e com os curativos feitos, mas sem ter jantado, refleti naquele pequeno quarto de hotel sem ar-condicionado e ainda sentido muito calor e dor sobre o que acontecera comigo naquele dia.

Minha mulher ligou e eu, naturalmente, omiti a parte sanguinolenta daquela etapa da viagem, apenas disse-lhe que já estava hospedado e iria dormir logo que ela desligasse, pois estava muito cansado. Eu a alertei sobre a possibilidade de um atraso em meu encontro com ela em Santiago no dia 10 de abril, afinal, pensei comigo, teria que examinar a moto no dia seguinte e fazer os reparos necessários em uma oficina e isso demandaria no mínimo uma manhã inteira.

Após refletir sobre esse desagradável acidente no terceiro dia de viagem e bem no meio da Argentina, conclui a minha parcela de culpa nesse evento.

Afinal, ser honesto comigo mesmo e mudar eventuais atitudes erradas era tudo o que estava ao meu alcance, uma vez que não posso mudar a forma como outras pessoas se comportam.

Conclui que havia por poucos segundos relaxado nos procedimentos de direção defensiva. Ignorei por alguns instantes a regra de ouro de todo motociclista experiente: todos os veículos que têm mais de duas rodas são inimigos potenciais dos motociclistas, portanto, fuja deles!

Nesse caso em particular, o procedimento correto seria não arrancar junto à picape quando o sinal ficou verde. No dia a dia isso é fácil, pois até mesmo uma pequena moto 125 tem uma aceleração inicial melhor que a aceleração normal da maioria dos carros, por isso, é comum ver nas grandes cidades a motos sempre na frente dos carros quando o sinal fica verde.

O acidente foi provocado como sempre por uma série de fatores, mas se não estivesse tão concentrado com a placa que indicava onde eu deveria virar para Villa Maria teria, ou arrancado na frente com uma leve aceleração, ou teria deixado aquela infeliz picape preta ter me passado até uma distância mais segura.

Por não ter feito isso fiquei sujeito a imprudência criminosa daquele motorista imbecil, que não apenas me derrubou como também fugiu covardemente. Caso tivesse agido defensivamente (como sempre faço) esse evento teria sido apenas a milésima fechada que teria tomado de um motorista idiota em mais de 20 anos de motociclismo - com um provável xingamento de minha parte.

Assim, a conjugação da má sinalização no estreitamento da via, a imprudência do motorista e de minha negligência com direção defensiva custou-me um joelho e um cotovelo ralados.

Além disso, não devia desprezar o fato da tensão que senti o dia todo ao estar pela primeira pilotando em terras estrangeiras, bem como o cansaço que já se fazia presente naquele momento.

Ironicamente, em uma viagem de mais 8.000 Kms, eu sofri um acidente a menos de 40 Km/h em um semáforo dentro de uma pequena cidade no interior da Argentina...

Tendo concluído isso, fui dormir, pois não havia acontecido nada que no dia seguinte me impedisse de prosseguir em minha jornada rumo ao Chile.

5 comentários:

  1. Olá
    Gostaria de saber se alguém que não fala outro idioma consegue realizar uma aventura destas(argentina e chile)

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  2. Sim, claro, algumas palavrinhas básicas, que muitos livros de orientação turística possuem ajudam.

    Em São Pedro de Atacama praticamente só se usa inglês, mas naturalmente o "portunhol" também é usado.

    Não há com que se preocupar quanto ao idioma, dá para se virar numa boa.

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