domingo, 24 de maio de 2009

Os preparativos e a motivação para a viagem.


Conhecer o Chile cruzando a Cordilheira dos Andes de moto era uma antiga meta.

Naturalmente, uma viagem como essa não é uma coisa simples. Os custos são altos, o tempo necessário seria de no mínimo vinte dias, o planejamento com o trajeto exige dedicação; as condições físicas e emocionais não devem ser desprezadas, a escolha da moto e sua preparação são importantes e, sobretudo, a escolha da estação do ano para uma travessia intercontinental, com uma grande variação de latitude e altitude, não pode ser negligenciada.

Há anos eu estudava os lugares que queria conhecer nessa parte do continente sul-americano. Eu lia os relatos de outros motociclistas que já tinham feito essa travessia e decidi que faria a viagem no início do outono: nesta época do ano o calor no Brasil e na Argentina não seria excessivo, além disso, normalmente, chove menos durante essa estação e haveria um risco menor de nevascas na Cordilheira.

Assim, concluí que no outono haveria menos calor, menos frio, menos chuva e provavelmente nenhuma neve: condições ideais para uma viagem de moto.

Inicialmente eu incluí em meu trajeto a travessia de moto do Deserto do Atacama e dos Altiplanos Chilenos. Encontraria com a minha mulher em Santiago (onde haveria uma interrupção) e faríamos um tour pela região central do Chile e talvez pegássemos um avião para o sul do país antes do reinício de minha jornada solo de moto rumo ao deserto.

Contudo, quando mostrei para minha mulher as fotos disponíveis na Internet do norte do Chile, ela não se conformou com a possibilidade em não conhecê-lo.

Um “acordo” foi necessário ao bem estar do casal, conheceríamos o norte juntos e de avião, uma vez que sabia que minha mulher não abdicaria em levar uma volumosa bagagem repleta de supérfluos femininos... Ademais, uma viagem como essa é muito dura e é privativa dos aficcionados por motos: não faria sentido exigir tal abnegação de minha mulher.

A escolha da moto é importante e no meu caso foi fácil, pois sabia que praticamente 99% da viagem seria realizada em estradas asfaltadas, portanto, minha brava e confiável Honda CB 500 mostrava-se mais do que habilitada para essa jornada, sendo, assim, a moto eleita para a aventura.

Possuo uma Honda CB 500 2001 desde 2001: já fiz inúmeras viagens com ela em seis estados do Brasil, tendo em muitas dessas viagens, cruzado por lugares os quais alguns motociclistas temem ir até com motos big-trail, como em Visconde de Mauá no Rio de Janeiro entre outros lugares difíceis.

Quando morei em São Paulo em 2002 ia regularmente ao Rio de Janeiro com essa moto, às vezes à noite.

A CB 500 é uma moto robusta de concepção simples e eficiente, possui o melhor motor de sua categoria, um bi-cilindro em linha de alta compressão com refrigeração líquida e carburação dupla. A CB tem um desempenho um pouco superior ao de um automóvel com motor 1.8, mas com uma aceleração muito superior; possui um sistema de iluminação satisfatório, boa posição para dirigir em estrada em uma “tocada” mais agressiva e um excelente freio dianteiro.

Embora a suspensão traseira da CB seja bi-choque, o conjunto do chassi e dos aros 17 permite que a moto seja bastante estável em velocidades altas em estradas bem asfaltadas. A CB também possui um bom tanque de gasolina, fundamental para trechos mais inóspitos, com capacidade de quinze litros de gasolina e mais preciosos três litros na reserva.

A CB 500 carece de um amortecedor de direção (para maior segurança) e de uma bolha aerodinâmica (para melhor conforto).

O fato do motor da CB 500 ser um bi-cilindro em linha faz com que a moto tenha um funcionamento suave sem muita trepidação, ao contrário dos motores bi-cilíndricos em V das Harleys ou de Trails monocilíndricas; sendo que essa suavidade do seu motor é uma característica extremamente desejável em longos percursos, que expõem o motociclista aos inevitáveis solavancos das estradas e a muitas horas de “integração” homem-máquina.

A CB 500 está longe de ser uma super bike quanto ao desempenho ou de possuir a sofisticação de alguns modelos como a BMW, que possuem acessórios como punhos e bancos aquecidos, bagageiros originais de fábrica, CD, GPS, suspensões de longo curso, eixo cardã etc.

Em suma, a CB 500 é uma moto robusta e confiável, um item essencial para uma longa travessia, além de possuir um bom desempenho.

Apenas me preocupava com a altitude, pois como a CB é “carburada” e não “injetada”; sua regulagem de mistura é fixa, sendo complicado alterar a mistura ar/combustível dos carburadores na estrada por conta da equalização que deve haver entre eles, contava, contudo, com o bom torque do motor para enfrentar as elevadas altitudes da Cordilheira dos Andes combinando trocas de marchas com rotações mais baixas: fórmula essa que funcionou perfeitamente acima dos dois mil e quinhentos metros de altitude, quando o motor não passava dos 6.000 RPMs.

Como eu não viajava há algum tempo, havia relaxado com a manutenção da moto, o que me obrigou a passar um pente fino nesse quesito. Troquei a relação completa da moto, óleo do motor e da suspensão, regulagem do carburador, pastilhas de freio, reajuste de parafusos, colocação de bagageiro traseiro etc.

Com tudo OK com a moto e com a documentação, fixei a data do início da viagem para cinco de abril de 2009, em um domingo.

Antes de iniciar a viagem tive de enfrentar os apelos, angustias, reclamações e protestos de minha mãe, do meu irmão e mesmo de minha mulher (mais conformada com a minha natureza aventureira) contra a minha “perigosa” viagem: levei na esportiva e, como sempre, procurei acalmá-los; claro que isso não bastou para acalmar ninguém, nem tão pouco me convenceu a desistir da viagem.

Meus familiares são “motofóbicos”, portanto, não compreendem a felicidade que um motociclista sente com a emoção e liberdade que uma viagem de moto proporciona.

Não há qualquer razão lógica para se fazer tal jornada. Alegar desconforto é uma tolice sem fim, pois seria o mesmo que pedir a um velejador para deixar seu veleiro no píer e fazer uma viagem rastaquera naqueles ridículos navios de cruzeiro! Ou ainda pedir para um alpinista conhecer o pico de uma montanha em um helicóptero... Ou ainda alegar que os mosquitos, o calor e a umidade impediriam alguém de pescar em um afluente do Rio Tapajós.

Não há razão para se viajar de moto. Apenas a estrada e o prazer de cruzá-la importam ao motociclista, às vezes sequer há uma estrada (como em algumas viagens off-road que fiz), mais ainda sim ali está o desejo de conhecer uma região e experimentar uma irreprimível sensação de liberdade e superação.

Desde minha primeira viagem nos anos 80 utilizando uma Yamaha DT 180 com sistema elétrico de 6 volts e motor de dois tempos eu jamais parei de viajar de moto. Lembro que essa primeira viagem foi um circuito off-road indo de Itaipuaçu a Cabo Frio no estado do Rio de Janeiro por estradas de terra, pinguelas, trilhas, praias e dunas.

Viajar por terra e conhecer as pessoas e sua cultura, lugares, mudanças de clima e paisagens naturais é muito mais intenso em uma motocicleta, ademais, nada agrada mais a um motociclista do que ficar semanas fazendo aquilo que ele mais gosta: pilotar!

Há muito desisti de convencer quem quer que seja sobre os prazeres do motociclismo, não quero convencer ninguém a evitar o calor, o vento, a chuva, o frio, a poeira, os irritantes insetos e as dores musculares de um longo percurso de moto.

Ora, mas então muitos ainda sim poderiam dizer – É muito longe essa sua viagem! Por que não faz passeios mais curtos e agradáveis, sem necessidade de passar em lugares chatos e se cansar demasiadamente?

Porque o importante é a jornada e não o destino.

E que não se diga que tal viagem dependa só de dinheiro, pois é possível realizar uma jornada assim em uma Honda Gold Wing com hospedagens cinco estrelas ou em uma Honda GC 125 acampando; e de fato muitos já fizeram isso.

O fundamental em uma viagem assim é um espírito livre, pronto para superar todos os desafios com determinação.

O perigo de fato existe e a melhor política em relação a isso é sempre ter a consciência de que ninguém está imune a ele. Além disso, há sempre a máxima dos motociclistas: há somente dois tipos de pilotos, os ousados e os mais velhos...

Assim, é a prudência e a experiência que definem a medida dos riscos que um motociclista enfrenta.

As quedas são inevitáveis na vida de um motociclista (elas apenas se tornam cada vez mais raras ou inexistentes com o passar dos anos), visto que a posição natural de tudo que tem duas rodas é a horizontal e, em conseqüência, algumas vezes as motos atendem ao chamado da natureza...

Então outros diriam – Por que viajar sozinho? É perigoso!

Bem, quanto aos perigos já expus o que penso. Viajo às vezes sozinho pelo simples motivo de não ter maiores problemas em ter a mim mesmo como companhia, em algumas circunstâncias é quase uma necessidade experimentar a liberdade e a independência que um pouco de solidão proporciona, além disso, antes só do que mal acompanhado!

11 comentários:

  1. Alberto, parabéns!!!!! Gostei muito da narrativa de seus preparativos e da parte meio que teórica da viagem. Você tem uma maneira legla de contar o que passou, prende a atenção do leitor, enfim, tenho certeza que os apaixonados por moto vão amar.

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  2. Um grande escritor e uma grande aventura!! Só me deixou de cabelo em pé, mas valeu muito!
    Muito amor e muitos beijos,
    Patricia.

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  3. Cara, o parágrafo onde você fala do velejador, do alpinista e do pescador foi, para mim, o ponto alto dessa abertura. Maravilhosamente bem colocado! Achei que eu e Fernando éramos os únicos a achar viagens em navios de cruzeiros ridículas. Aliás, rastaquera é fantástico! Que verve! hehehe Olha, não sou motociclista, mas lendo seu texto deu muita vontade de ser. Vou continuar acompanhando a aventura. Abraços.

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  4. Gostei muito desta leitura.... contando vários detalhes impressindiveis há pessoas que também desejam realizar esta façanha.... também pretendo realizar esta viagem só tenho que convencer o marido... por este muotivo procuro ler os comentarios de pessoas assim como você que já foram...
    abraços e desejo muitas e muitas viagem.
    jaque

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  5. Excelente narrativa. E é assim mesmo como você disse: não adianta querer mostrar razão para um motociclista, pois paixão é totalmente irracional..
    Também sou como você, viajo de moto para onde quero, faça sol ou chuva, não importa.

    Parabéns e viva Nós.. :)

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  6. Engraçado, saí para comprar um termômetro desses de ver a temperatura ambiente, quando entrei numa loja de motos no centro de São Paulo. Encontrei uma Suzuki Freewind 650cc, ano 2000, e me apaixonei. Paião à primeira vista. Daí imaginei-me fazendo uma viagem semelhante à sua. Meu objetivo era comprar apenas um termômetro, mas surgiu um sonho verdadeiro que quero de fato realizar. Estou procurando uma dessas bigtrail produzidas entre 1998 e 2003 enquanto procuro orientações de quem já realizou a façanha. Parabéns pela narrativa. Abraço, Ricardo Mendes

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  7. Pronto, concluída a 1ª etapa, comprei minha Freewind 2003 com apenas 8600 km em Curitiba. Jà trouxe para São Paulo e vou começar o planejamento da viagem. Tenho 2 amigos que estão começando a se interessar. Abraços, Ricardo Mendes

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  8. Oi Ricardo, quando vc planeja iniciar a sua viagem? Já tem alguma idéia sobre o roteiro?
    Caso queira mais alguma informação me mande um email (albliberal@gmail.com)
    Abraços e parabéns pela sua iniciativa!

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  9. Olá Alberto, penso que será em 2012. Vou seguir seus conselhos e partir provavelmente no início de abril. Pensei em conhecer o Atacama. Já estive em Santiago há muitos anos, mas fazer essa viagem de moto me instiga demais.Agradeço sua gentileza em dar informações preciosas. Abraço, Ricardo Mendes

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  10. Ola Alberto, parabéns adorei seu relato, muita informação importantíssima,
    Estou programando uma viagem de moto pela América Latina. Uruguai, Argentina, Chile, Bolivia, Peru, Equador, Colombia e Venezuela.

    Vou sair em agosto de 2015 e pretendo voltar em novembro 2015.

    Vc fez esse percurso? Tem alguma dica pra me dar? Confesso que estou bem ansiosa, mas também bem preocupada, pois vou sozinha...Estou me preparando e fazendo toda a programação, mas sei lá, dá um medo!! Abs Elidiane

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    1. Elidiane, obrigado pela leitura do Blog.
      Você tem um admirável espírito de aventura!
      A única viagem que fiz pela América do Sul foi esta contida no Blog; o percurso (Argentina e Chile), em detalhes, você poderá conferir ao longo das páginas. Fiz a rota Uruguaiana (RS)/Santiago pela cidade de Mendoza (Argentina).
      Infelizmente, não tive o prazer de pilotar pelo Peru, Colombia, Equador e Venezuela.
      Acrescento que tenho muita vontade de conhecer a Rodovia do Pacífico que liga o Acre ao Perú através da Cordilheira dos Andes: essa rodovia facilita o acesso à Bolívia (Lago Titicaca, Carretera de la Muerte), bem como ao Deserto de Atacama no Chile e a Machu Picchu no Peru; portanto, dependendo de onde for inicio de sua jornada, pode ser interessante utilizar essa rodovia para o inicio da viagem ou para efetuar o retorno ao Brasil, embora exista uma rodovia que liga a Venezuela à Roraima.
      Uma mulher sozinha de moto em um percurso longo pela América do Sul pode ser algo inédito, sabia?
      Disponibilizo o meu email: albliberal@gmail.com
      Abraços e parabéns!

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